Não há nada mais entediante do que morar em uma cidade que não tem nada pra fazer. Salvo engano, observando o evidente fato de que não é de hoje que existem formas de entretenimento que nos deixam prostrados no sofá ou na cama, a sensação de viver sem música, sem cinema, sem teatro, sem museu, sem vida cultural ou sem acesso a arte, é um desalento.
A pandemia, caso seja razoável nos referirmos a ela já usando o passado, se de um lado deixou em dificuldades agudas um sem número de artistas, de outro também atordoou toda uma classe de trabalhadores que têm seu ofício atrelado a parte operacional da cultura, ao backstage. E, entre nós, que gostamos e necessitamos das artes, ficou explícito o tanto que elas fazem falta no dia a dia, ou também o quanto que muitas vezes a gente não dá o devido valor à classe artística.
Se é com a arte que alimentamos parte da nossa alma, por que contraditoriamente ouvimos músicas todos os dias e há ainda a tão comum indisposição para pagar um couvert? Se assistimos tantos filmes, séries, novelas, conteúdo audiovisual na internet, por que há tão poucos cursos de teatro ou preconceito com a dramaturgia? Se Machado de Assis ou Jorge Amado, ou tantos outros, estão no inconsciente coletivo do brasileiro como monumentos e símbolos da brasilidade, por que motivo desidratou o interesse pelos cursos de letras na última década?
Um olhar possível para explicar esses paradoxos, é reparar um pouco no lado legislativo da arte e da cultura. Além de todos os tipos de escárnios que já sofreu a Lei Rouanet, negativamente estigmatizada pela tese falaciosa de ser uma lei construída para subsidiar artistas letárgicos, no âmbito federal, por exemplo, os últimos dois anos foram marcados pela aprovação da Lei Aldir Blanc (LAB) e pela Lei Paulo Gustavo (LPG), que objetivam assistir com renda emergencial os profissionais no setor cultural e criativo, subsidiar a manutenção de espaços culturais que tiveram suas atividades interrompidas no período da pandemia, e fomentar novas atividades culturais através de editais e prêmios para o setor.
Essas duas leis que os homenageiam, pois, foram eles vítimas da pandemia na sua fase mais cruel, hoje preocupam toda uma classe artística do país, em vez de ajudá-la e acalmá-la, porque infelizmente já há duas semanas que foram adiados os repasses de verbas de ambas as leis, no valor que dispõe aproximadamente 6,8 bilhões de reais, para a classe dos trabalhadores da cultura e da artes – Medida Provisória (MPV) 1.135/2022.
Aldir Blanc disse em 1979, ano da Anistia no Brasil, que embora a tarde caísse feito um viaduto, havia esperança e o show tinha que continuar. Paulo Gustavo, dos atores e comediantes mais queridos da história recente da dramaturgia, encantou e emocionou a muitos de nós com um discurso sobre o riso, especialmente com a máxima ̈rir é um ato de resistência ̈ bem quando estávamos desenganados após o trágico primeiro ano pandêmico.
Esses apelos, que não deixam de serem éticos também, pela esperança e poder do humor fazem pensar que na nossa Marília, cidade tipicamente de uns 240 mil habitantes, equipada com não muitas indústrias e uma economia urbana sobretudo marcada pelos comércios e serviços, dá gosto de ver que mesmo contra a maré tem uma galera boa por aí trabalhando em prol da cultura da cidade.
Há por exemplo entre nós, desde 2018, atuando na construção artística e cultural da cidade e região, a jornalista e produtora cultural Caká Cerqueira César, mantenedora da La Musetta, empresa que amplia as possibilidades do mercado da arte captando verbas públicas ou privadas para projetos culturais dos mais diversos, que invariavelmente deixam a cidade muito mais interessante. De tantos casos de sucesso de crítica e público que a Caká já produziu, nos obrigamos a selecionar alguns porque seria, aliás, impraticável contemplar todos eles no espaço numa só coluna.
Recentemente, o artista gráfico Tiago de Moraes Chagas, profissional que faz parte do time de artistas produzidos pela Caká, lançou a ficção Radius, HQ editado pela LM Comics, que se passa no ano de 3121 em um futuro distópico, numa Marília que agregou as 62 cidades no seu entorno, em função do crescimento descontrolado e da conurbação, quando passamos a ter uma superpopulação entre 10 a 12 milhões de habitantes, explorando na história fissuras surgidas com a covid-19 a partir de 2020, ano zero da pandemia de coronavírus. Isto é, Marília tem uma personagem própria no formato de narrativa de HQ, um super-herói propriamente. Isto é obviamente muito legal de saber, de apoiar e de consumir.
Outro projeto belíssimo foi o espetáculo de Drag Queens em Marília, ‘Drags e Santas – Movidas pelo Amor’, que obteve aprovação do PROAC – Programa de Ação Cultural de São Paulo – Cidadania Cultural LGBTQIA. Com a direção e elaboração da Caká, trouxe interpretações e performances de um repertório musical intercalado com biografias em depoimentos de três artistas: Valentina Veigga, interpretada por Leandro Gustavo, Raphaella Albuquerque, personalidade de Renato de Souza e B. Diamond, drag queen vivida por Adilson Júnior dos Santos. Nas palavras da diretora é ¨Importante compartilharmos toda a construção destas personalidades que sempre estiveram ao lado do bem, praticando a solidariedade e levando o amor para todos os lugares em que passaram e passam. A proposta do espetáculo também é compreender melhor suas lutas e batalhas contra a violência. Apesar de tamanhas dificuldades, elas jamais abandonaram sua autoconfiança e nunca deixaram a empatia para trás”. É a arte, portanto, aliada à função social de disseminar o amor no lugar da incompreensão.
Mais uma contribuição maravilhosa, embora esta já possa ser considerada clássica, é a exposição da obra Escaneandome, da fotógrafa e artista plástica Luciana Crepaldi, que Marília também contará em um futuro não tão distante. São conjuntos de grandes painéis verticais que exploram a poética das imagens de corpos, todavia captados não com câmeras fotográficas como é convencional, mas sim com um mosaico de imagens feitas impressionante e inovadoramente com um scanner.
Segundo texto do site da La Musetta, ipsis litteris, o tratamento de luz, sombra e fundo são limitados pelo periférico, todavia a tridimensionalidade da obra está no minimalismo dos movimentos que a artista se expõe em quadro a quadro, sugerindo gestos lentos e expressivos, numa referência ao Butô e a delicadeza das texturas orientais. Escaneandome é uma obra de imersão subjetiva e poética e traz em sua concepção de pós-fotografia a ideia de que o meio de produção é também parte do artista com a mensagem se fundindo à obra. É dessas coisas inenarráveis, só vendo pra crer na complexidade e nas impressões múltiplas que ocorrerão diante dos olhares privilegiados de nós que, tomara que logo, contemplaremos.
A arte existe porque a vida não basta, dizia sempre o saudoso Ferreira Gullar. Celebremos, então, o entusiasmo de uma Marília crescentemente artística e cultural pós-pandemia, valorizemos cada vez mais nossos artistas. Mesmo porque sem isso tudo, ficaria tudo perigosamente insosso.